COVID-19 está deslocando a cadeia de suprimentos: do global para o regional
A cidade de Wuhan, na China, agora é conhecida como o ponto zero da COVID-19. Mas também é um importante centro de fabricação de peças automotivas e semicondutores: componentes essenciais para muitas empresas do mundo todo.
Segundo a empresa de informações empresariais Dun & Bradstreet, 51 mil empresas têm um ou mais fornecedores diretos em Wuhan. Por isso, o fato de a pandemia do coronavírus ter começado nessa cidade abalou tanto a economia internacional. A pandemia torna evidente a fragilidade da cadeia de suprimentos mundial, que vem contando com a terceirização da fabricação para regiões remotas com o objetivo de reduzir os custos.
Parag Khanna é um conceituado consultor em estratégia global, líder de ideias e autor do best-seller Connectography e de outros livros sobre o futuro da economia mundial. Khanna prevê que a crise do coronavírus vai apenas acelerar tendências que já vinham acontecendo – como o deslocamento do globalismo para o regionalismo e o enfraquecimento do papel da China como principal fábrica do mundo. “Hoje a maioria das relações comerciais dos Estados Unidos é estabelecida com o México e o Canadá, e não com a China e a Europa”, afirma Khanna. “Grande parte do comércio europeu está concentrada na Europa e do asiático na Ásia. A China negocia mais com os pequenos países do sudeste asiático do que com os Estados Unidos. Poucas pessoas percebem isso.”
A tendência ao regionalismo também está presente no setor de construção civil. Por exemplo, o mundo inteiro tem comprado da China a maior parte do aço que consome. Segundo a Investopedia.com, em 2017, a China produziu 831 milhões de toneladas métricas de aço bruto. Já o Japão produziu apenas 104,7 toneladas, os Estados Unidos produziram 116 toneladas, a Índia, 101,4 e a Rússia, 71,3. A China e o Japão são os maiores exportadores de aço, e os Estados Unidos e a Alemanha lideram as importações em virtude das elevadas taxas de consumo dessas economias.
Os Estados Unidos recorrem ao aço importado da China em razão do baixíssimo preço. “Existe um mercado global do aço porque houve uma desregulamentação global do comércio. Com isso, tornou-se mais vantajoso comprar aço da China do que de qualquer outra parte do mundo”, explica Khanna. “A China abarrotou o mundo com aço barato.” No entanto, com o deslocamento do comércio para países vizinhos em lugar da China, Khanna prevê que mais países passem a fabricar e comercializar aço localmente, o que é um bom sinal para o meio ambiente.
“Os Estados Unidos também produzem aço”, comenta Khanna. “A Europa produz aço. Todos os países têm um setor siderúrgico. Existe hoje grande pressão das mudanças climáticas na regulamentação e um certo sentimento de dever de todos os setores da economia para tornar suas cadeias de suprimentos mais ecológicas. Sendo assim, o transporte do aço pelo mundo – enviando-o de um país em que a produção é a menos eficiente e a mais tóxica possível, como é o caso da China – não caracteriza um setor ecológico.”
Mas o aço produzido nos Estados Unidos será mais caro e tornará proibitivo o custo dos projetos de construção civil? Khanna não demonstra preocupação com isso. “Acredito que é possível ser otimista quanto aos preços das commodities de um modo geral”, comenta. “Hoje os alimentos são as únicas commodities com alta progressiva dos preços. Mas o fato é que os Estados Unidos podem produzir mais aço. E, se houver mais oferta, o preço baixa.”
Khanna prevê que a automação vai ajudar os Estados Unidos a retomar a fabricação de forma economicamente mais viável. Apesar de o país estar atrás de muitos outros (como a China, o Japão, a Coreia e o Canadá) no campo da robótica, “os Estados Unidos poderão alcançá-los em pouco tempo”, afirma Khanna. “Não há barreiras à entrada nesse setor. Todo o conhecimento e tecnologia necessários já existem. O fato é que o país está tão globalizado que essa área não tem tido prioridade. Com o tempo, os Estados Unidos podem se atualizar em robótica industrial nos setores de fabricação e construção civil. Não tenho dúvida de que as construtoras residenciais do país vão tirar proveito desses recursos para reduzir custos.”
Uma resposta ao cenário de deslocamento no comércio global tem sido “produzir onde se vende”, comenta Khanna. A saída dos Estados Unidos do acordo da Parceria Transpacífica (TPP) limitou a comercialização por empresas americanas como a Apple e a GM para os mercados asiáticos, que são essenciais ao sucesso dessas organizações. Para contornar esse obstáculo, a Apple, por exemplo, vem instalando fábricas na China para poder vender produtos ao país asiático sem a proteção da TPP.
“É viável para a Apple produzir todos os iPhones em uma fábrica no Texas. Uma fábrica robótica da Foxconn no Texas poderia produzir todos os iPhones e iPads do mundo”, assegura Khanna. “Por que fabricá-los na China? O motivo é simples: se a empresa não fabrica os produtos em território chinês, a China não permite a venda no país. Além disso, se a empresa não vender iPhones na China, o preço das suas ações cai, porque o país representa um grande percentual das vendas da Apple.” No entanto, Khanna observa que os componentes utilizados para construir edifícios não são da mesma natureza que os semicondutores porque “não são áreas sensíveis, em que existe o receio de ruptura nas cadeias de suprimentos ou de escassez, nem são áreas sujeitas a roubo de propriedade intelectual”.
As mudanças climáticas são o principal motivo pelo qual Khanna acredita que as cadeias de suprimentos do setor de construção civil vão se tornar mais regionais. Khanna chama atenção para o súbito aumento na popularidade do uso de madeira, em vez de concreto e aço, em edifícios de altura média e elevada. “A América do Norte, a Rússia e a maioria dos países com grandes setores de construção civil também têm uma ampla provisão de madeira”, afirma. “Uma melhor utilização dos recursos disponíveis, aliada à aplicação de técnicas mais inovadoras, é um caminho para uma atuação mais regional e, ao mesmo tempo, mais sustentável.”
À medida que a cadeia de suprimentos global se tornar mais instável e se reorganizar em função da pandemia, as economias e os regulamentos comerciais também vão passar por mudanças, resultando na fabricação regional dos componentes de construção. Khanna argumenta que a infraestrutura é mais relevante – e mais importante – do que as fronteiras nacionais. Um grande benefício adicional da presente turbulência é a possibilidade de que a pegada de carbono do setor diminua.
“Não há nada no mundo que a América do Norte não possa produzir”, afirma Khanna. O argumento é que os Estados Unidos têm terceirizado a fabricação por opção, não por necessidade. “A região da América do Norte é bem mais autossuficiente (e menos dependente do comércio) do que outras regiões. Por vários motivos: a grande população combinada de quase 500 milhões de habitantes, os recursos naturais abundantes, a imensa riqueza financeira e a base industrial e tecnológica”, explica Khanna em um artigo recente na Quartz. O retorno das fábricas aos Estados Unidos e regiões vizinhas talvez seja um resultado inesperado, mas positivo, da pandemia.
É compreensível que as pessoas estejam ansiosas para que tudo volte ao “normal” que todos já conhecem. No entanto, Khanna alerta para o fato de que um retorno à velha economia não é possível. “Alguns empregos voltam, outros são automatizados, novos setores são criados e assim por diante”, comenta. “Não haverá retorno ao estado original da economia. Trata-se, basicamente, de um novo estado. E, de um modo geral, isso é bom.”